A transformação energética do Brasil nas próximas décadas exigirá mais do que ambição climática: será preciso planejamento agressivo e investimentos de proporções bilionárias. Mesmo que o país não consiga cumprir sua meta de zerar as emissões líquidas de gases do efeito estufa até 2050, a necessidade de triplicar a capacidade instalada de geração elétrica se impõe como caminho inevitável.
Os dados são da BloombergNEF (BNEF), braço de pesquisa em transição energética da Bloomberg, que calcula que a potência elétrica instalada do Brasil, hoje em cerca de 235 gigawatts (GW), precisará saltar para pelo menos 574 GW em 2050 — e, caso o país siga firme rumo à neutralidade climática, esse número deverá atingir impressionantes 842 GW.
Emissões relacionadas à energia e orçamento de carbono líquido zero, Cenário de Transição Econômica e Cenário Líquido Zero
Trata-se de um salto sem precedentes no sistema elétrico brasileiro. E mais: ele será necessário mesmo que o país siga em um cenário “econômico”, de transição energética motivada por custos e não por compromissos ambientais. A razão? O avanço da eletrificação na indústria, nos transportes e na infraestrutura urbana.
“A transição energética no Brasil acontece muito mais por motivos econômicos do que climáticos. A queda nos preços de tecnologias limpas está tornando a eletrificação mais competitiva e inevitável”, explica Vinicius Nunes, chefe de pesquisa do mercado brasileiro de transição energética na BloombergNEF.
A análise considera que, até mesmo sem políticas públicas específicas, o Brasil verá a eletricidade se tornar dominante na matriz de energia final. Um exemplo é a popularização dos carros elétricos: para motoristas que rodam mais de 16 mil quilômetros por ano, essa opção já se mostra mais barata que modelos a combustão, e essa diferença deve aumentar ainda mais nos próximos anos, segundo a BNEF.
Emissões relacionadas à energia e orçamento de carbono líquido zero, Cenário de Transição Econômica e Cenário Líquido Zero
Essa substituição do uso de combustíveis fósseis — como gás, carvão e petróleo — se dará majoritariamente via eletricidade. No cenário de emissões líquidas zero, a eletrificação será responsável por mais da metade (55%) da redução do uso de fósseis. Desse total, cerca de 70% virá da transição dos carros a combustão para veículos elétricos e os 30% restantes da eletrificação de processos industriais, que ainda hoje dependem fortemente de combustíveis fósseis para operar.
Mas a substituição dos fósseis não virá exclusivamente pela via elétrica. Outras tecnologias terão papéis complementares, embora igualmente relevantes. A BloombergNEF projeta que o hidrogênio de baixa emissão — conhecido como hidrogênio verde ou azul, a depender da sua origem — poderá responder por 10% da substituição dos fósseis, especialmente na indústria pesada e no transporte de longa distância.
Outra tecnologia estratégica será a captura e armazenamento de carbono (CCS), que também deverá representar 9% da substituição. Isso significa desenvolver infraestrutura capaz de retirar dióxido de carbono da atmosfera ou de processos industriais e armazená-lo de forma segura. Embora ainda pouco adotada no Brasil, a CCS é vista como essencial para setores de difícil descarbonização, como a siderurgia e a produção de cimento.
Os biocombustíveis, por sua vez, aparecem com 8% de participação no esforço de redução dos fósseis, com potencial para crescer a depender da política pública adotada. O Brasil, um dos maiores produtores mundiais de etanol, quer ampliar sua influência nesse mercado e tenta, ao lado de países como a Índia, promover os biocombustíveis como solução de transição nos fóruns internacionais. Essa posição agrada montadoras de fora da China, já que permite manter a cadeia de produção de motores a combustão em operação por mais tempo, principalmente por meio de modelos híbridos.
A BNEF observa, no entanto, que o papel dessas tecnologias alternativas só se materializa de forma expressiva em um cenário de transição profunda. “Hidrogênio verde, SAF (combustível sustentável de aviação), captura de carbono — essas tecnologias ainda não são viáveis economicamente no Brasil sem um empurrão forte do Estado. São setores que dependem diretamente de subsídios e políticas públicas agressivas”, afirma Nunes.
Na outra ponta, tecnologias como energia solar e eólica, além de sistemas de baterias, serão fortemente demandadas mesmo em um cenário mais brando, de transição motivada apenas pela economia. Isso porque, segundo a BNEF, essas fontes já são mais baratas que alternativas fósseis em várias regiões do Brasil, mesmo sem incentivos.
A geração elétrica de origem renovável e nuclear também terá papel crucial: será responsável por substituir os 10% da atual demanda energética brasileira que ainda é atendida por fósseis no setor elétrico. Essa substituição, embora pareça pequena frente ao total da matriz, representa um marco simbólico no avanço das energias limpas sobre o parque térmico — hoje, dependente de gás natural, carvão e óleo combustível.
Esse crescimento, no entanto, esbarra em um paradoxo atual do setor: o Brasil, apesar de precisar ampliar sua capacidade instalada, já enfrenta momentos de sobra de energia, principalmente nos horários de pico da produção solar. Isso obriga o Operador Nacional do Sistema (ONS) a cortar a geração de algumas usinas, gerando insatisfação entre investidores e operadores do setor.
“É o clássico problema do ovo e da galinha”, diz Nunes. “O setor elétrico quer atrair mais demanda, mas a demanda não aparece de forma rápida o suficiente para absorver toda a nova oferta. Isso cria tensões no sistema e pode desestimular investimentos.”
A solução, segundo ele, passa por estimular o crescimento do consumo elétrico em setores que ainda usam outras fontes de energia. “Há indústrias em que a eletrificação pura ainda não se paga economicamente, mas com incentivos e planejamento, é possível destravar esse potencial”, explica.
O volume de investimento necessário é colossal. A BloombergNEF estima que, no cenário econômico — em que o país não zera suas emissões —, o Brasil precisará investir US$ 5,6 trilhões até 2050 em energia. Desse total, US$ 4,3 trilhões devem ser direcionados ao lado da demanda, como eletrificação de frotas e modernização da indústria. Já no cenário de emissões zero, o investimento total sobe para US$ 6 trilhões, com o mesmo volume direcionado à demanda e o restante aplicado na ampliação e diversificação da oferta energética.
O Plano Nacional de Energia 2050 (PNE 2050), da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), reforça essa visão, projetando uma matriz energética mais diversificada e limpa, mas com forte dependência de políticas estruturantes e estabilidade regulatória.
Para além das metas climáticas, o que está em jogo é a competitividade econômica do país. “A transição energética pode ser um diferencial para o Brasil, mas também um gargalo, se não for conduzida com planejamento e eficiência”, conclui Nunes.
A corrida pela eletrificação, portanto, já começou — e o Brasil, mesmo que não corra pelo ouro das metas ambientais, terá de correr para manter as luzes acesas.
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