O Chamado Global para a Modernização das Redes Elétricas

O Chamado Global para a Modernização das Redes Elétricas

Durante décadas, o setor elétrico operou sob um paradigma previsível: grandes usinas centralizadas gerando energia que fluía de forma unidirecional através de uma vasta rede de transmissão e distribuição até o consumidor final. Essa infraestrutura, uma das maiores maravilhas da engenharia do século XX, foi projetada para a estabilidade e a constância. Hoje, essa mesma estabilidade está sendo desafiada por uma revolução que ela mesma ajudou a criar: a transição para as energias renováveis.

Em um movimento que sinaliza a urgência do tema, a Agência Internacional de Energias Renováveis (IRENA), em colaboração com um consórcio de gigantes do setor elétrico, divulgou em setembro de 2025 um aguardado “plano de ação” para a modernização da infraestrutura elétrica global. O documento não é apenas mais um relatório técnico; é um chamado à ação, um reconhecimento coletivo de que a espinha dorsal do nosso sistema energético – as redes – precisa evoluir radicalmente para não se tornar o principal gargalo da descarbonização.

O plano, endossado por empresas que operam em todos os continentes, diagnostica um problema que especialistas vêm alertando há anos: estamos construindo as usinas do século XXI (solares e eólicas) e conectando-as a uma rede projetada com a mentalidade do século XX. O resultado é um sistema cada vez mais estressado, ineficiente e vulnerável.

O Paradoxo da Abundância: Por Que a Rede Atual Não Suporta o Futuro?

Para entender a magnitude do desafio, é preciso olhar para a natureza das novas fontes de energia. Diferente das usinas térmicas ou hidrelétricas, que oferecem geração firme e despachável, a energia solar e a eólica são intermitentes e variáveis. Elas produzem em abundância quando o sol brilha e o vento sopra, e param quando as condições mudam.

Essa variabilidade cria um pesadelo logístico para os operadores de sistema. No Brasil, por exemplo, já se tornou comum o fenômeno do curtailment, onde o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) é forçado a “desligar” usinas eólicas e solares em pleno funcionamento para evitar uma sobrecarga na rede e manter a frequência do sistema estável. Em essência, estamos desperdiçando energia limpa e barata porque a infraestrutura não consegue absorvê-la ou transportá-la para onde é necessária.

Além da intermitência, a geração distribuída – milhões de painéis solares em telhados de residências e comércios – inverteu o fluxo de energia. As redes, antes ruas de mão única, agora precisam ser avenidas de mão dupla, gerenciando fluxos complexos de energia que vêm de inúmeros pontos. Sem digitalização e inteligência, o resultado é instabilidade de tensão, perdas técnicas e um risco crescente de apagões localizados.

O plano da IRENA e seus parceiros ataca esses problemas de frente, delineando três pilares fundamentais para a construção da rede do futuro:
  1. Digitalização e Inteligência (Smart Grids): A base da modernização é a transformação da rede analógica em uma plataforma digital e inteligente. Isso envolve a instalação massiva de sensores, medidores inteligentes e softwares de gestão avançada que permitem o monitoramento em tempo real. Com uma Smart Grid, as operadoras podem prever congestionamentos, identificar falhas instantaneamente, gerenciar a demanda de forma ativa e otimizar o fluxo de energia de milhões de fontes distintas.

  2. Flexibilidade e Armazenamento: Se a geração é variável, a rede precisa ser flexível. O plano enfatiza a necessidade de investimentos maciços em tecnologias de armazenamento de energia, como baterias de grande porte (BESS – Battery Energy Storage Systems). Essas baterias funcionam como amortecedores do sistema: armazenam o excesso de energia solar gerada ao meio-dia e a injetam na rede no início da noite, quando a demanda atinge o pico e a geração solar cessa. Além das baterias, a flexibilidade pode vir de outras fontes, como a resposta da demanda (incentivar grandes consumidores a reduzirem o uso em horários de pico) e o hidrogênio verde.
  3. Resiliência e Fortalecimento Físico (Grid Hardening): A crise climática adicionou uma nova camada de risco. Eventos climáticos extremos, como tempestades, ondas de calor e incêndios florestais, são hoje uma das principais causas de interrupção no fornecimento de energia. O plano de ação clama por um “endurecimento da rede”, com investimentos direcionados para tornar a infraestrutura física mais robusta. Isso inclui desde a substituição de postes e cabos por materiais mais resistentes até o enterramento de linhas em áreas críticas e a adoção de projetos que considerem as projeções climáticas futuras.

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O Custo da Inação vs. o Retorno do Investimento

A modernização de uma infraestrutura tão vasta tem um custo monumental. Estimativas da Agência Internacional de Energia (IEA) apontam para a necessidade de trilhões de dólares em investimentos globais nas redes elétricas até 2040. No entanto, o custo da inação é comprovadamente maior. Ele se traduz em perda de competitividade econômica, maiores custos de energia para o consumidor final, menor segurança energética e, crucialmente, o fracasso em atingir as metas climáticas do Acordo de Paris.

O plano divulgado pela IRENA argumenta que esses gastos não devem ser vistos como um custo, mas como um investimento com alto retorno. Uma rede modernizada reduz as perdas técnicas e comerciais, otimiza o uso de ativos de geração (evitando o curtailment), abre caminho para novos modelos de negócio (como os mercados de serviços ancilares) e aumenta a confiabilidade do sistema, um fator essencial para a atração de indústrias.

No Brasil, onde se projeta um investimento de quase R$ 600 bilhões no setor elétrico até 2034, a alocação inteligente desses recursos será decisiva. A ANEEL e o Ministério de Minas e Energia enfrentam o desafio de criar um ambiente regulatório que não apenas incentive a expansão da geração renovável, mas que remunere adequadamente os investimentos cruciais em transmissão, distribuição e armazenamento, que são a verdadeira garantia da estabilidade do sistema.
O recado do setor produtivo, ecoado pelo plano da IRENA, é uníssono: a transição energética não acontecerá apenas com a instalação de mais painéis solares e turbinas eólicas. Ela depende, fundamentalmente, da construção de uma infraestrutura invisível, inteligente e resiliente, capaz de orquestrar a complexa sinfonia da energia do século XXI. A corrida pela descarbonização será vencida ou perdida nas redes elétricas.

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