Durante décadas, o setor elétrico operou sob um paradigma previsível: grandes usinas centralizadas gerando energia que fluía de forma unidirecional através de uma vasta rede de transmissão e distribuição até o consumidor final. Essa infraestrutura, uma das maiores maravilhas da engenharia do século XX, foi projetada para a estabilidade e a constância. Hoje, essa mesma estabilidade está sendo desafiada por uma revolução que ela mesma ajudou a criar: a transição para as energias renováveis.
Em um movimento que sinaliza a urgência do tema, a Agência Internacional de Energias Renováveis (IRENA), em colaboração com um consórcio de gigantes do setor elétrico, divulgou em setembro de 2025 um aguardado “plano de ação” para a modernização da infraestrutura elétrica global. O documento não é apenas mais um relatório técnico; é um chamado à ação, um reconhecimento coletivo de que a espinha dorsal do nosso sistema energético – as redes – precisa evoluir radicalmente para não se tornar o principal gargalo da descarbonização.
O Paradoxo da Abundância: Por Que a Rede Atual Não Suporta o Futuro?
Para entender a magnitude do desafio, é preciso olhar para a natureza das novas fontes de energia. Diferente das usinas térmicas ou hidrelétricas, que oferecem geração firme e despachável, a energia solar e a eólica são intermitentes e variáveis. Elas produzem em abundância quando o sol brilha e o vento sopra, e param quando as condições mudam.
Essa variabilidade cria um pesadelo logístico para os operadores de sistema. No Brasil, por exemplo, já se tornou comum o fenômeno do curtailment, onde o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) é forçado a “desligar” usinas eólicas e solares em pleno funcionamento para evitar uma sobrecarga na rede e manter a frequência do sistema estável. Em essência, estamos desperdiçando energia limpa e barata porque a infraestrutura não consegue absorvê-la ou transportá-la para onde é necessária.
Além da intermitência, a geração distribuída – milhões de painéis solares em telhados de residências e comércios – inverteu o fluxo de energia. As redes, antes ruas de mão única, agora precisam ser avenidas de mão dupla, gerenciando fluxos complexos de energia que vêm de inúmeros pontos. Sem digitalização e inteligência, o resultado é instabilidade de tensão, perdas técnicas e um risco crescente de apagões localizados.
O Custo da Inação vs. o Retorno do Investimento
A modernização de uma infraestrutura tão vasta tem um custo monumental. Estimativas da Agência Internacional de Energia (IEA) apontam para a necessidade de trilhões de dólares em investimentos globais nas redes elétricas até 2040. No entanto, o custo da inação é comprovadamente maior. Ele se traduz em perda de competitividade econômica, maiores custos de energia para o consumidor final, menor segurança energética e, crucialmente, o fracasso em atingir as metas climáticas do Acordo de Paris.
O plano divulgado pela IRENA argumenta que esses gastos não devem ser vistos como um custo, mas como um investimento com alto retorno. Uma rede modernizada reduz as perdas técnicas e comerciais, otimiza o uso de ativos de geração (evitando o curtailment), abre caminho para novos modelos de negócio (como os mercados de serviços ancilares) e aumenta a confiabilidade do sistema, um fator essencial para a atração de indústrias.
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