Como o Brasil Desperdiça uma Matriz Energética Equivalente a 70% do seu Consumo de Diesel

Como o Biogás se Prepara para Mover a Próxima Revolução Industrial Verde do Brasil

Enquanto os holofotes da transição energética brasileira se concentram, com razão, na expansão monumental da energia solar e eólica, um gigante silencioso, de imenso potencial estratégico, começa a despertar. Ele não depende do sol ou do vento, mas de algo que o Brasil tem em abundância inigualável: matéria orgânica. Este gigante é o biogás e seu derivado nobre, o biometano, uma fonte de energia que promete não apenas diversificar nossa matriz, mas também revolucionar o agronegócio, solucionar um passivo ambiental crônico e acelerar a descarbonização de setores de difícil abatimento.

O biogás não é uma tecnologia nova. Sua ciência – a digestão anaeróbica de resíduos por bactérias – é conhecida há séculos. O que é novo, e transformador, é a convergência de fatores que, em 2025, o posicionam como uma das mais inteligentes e estratégicas apostas energéticas do país. A urgência climática, a busca por segurança energética e a necessidade de uma economia verdadeiramente circular criaram o ecossistema perfeito para que o biogás saia da escala de nicho para se tornar um pilar da infraestrutura nacional.

O Potencial Bilionário Escondido nos Resíduos

Para entender a dimensão da oportunidade, os números apresentados pela Associação Brasileira do Biogás (ABiogás) são o melhor ponto de partida. O Brasil possui um potencial de produção de biogás de 84,6 bilhões de metros cúbicos por ano. É um volume colossal, capaz de suprir cerca de 40% do consumo nacional de energia elétrica ou substituir 70% de todo o diesel consumido no país.

Este potencial não é uma abstração. Ele está disponível hoje, nos resíduos gerados diariamente por nossas maiores potências econômicas:

  • Setor Sucroenergético: O maior filão, com capacidade para gerar 46,3 bilhões de m³/ano a partir da vinhaça e da torta de filtro.
  • Produção Agropecuária: A segunda maior fonte, com 29,5 bilhões de m³/ano provenientes dos dejetos de suínos, bovinos e aves.
  • Saneamento: Com 8,8 bilhões de m³/ano gerados a partir do lodo de Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs).

Atualmente, o Brasil aproveita menos de 3% desse potencial. Em 2024, a produção nacional foi de aproximadamente 2,3 bilhões de metros cúbicos. Embora o número de plantas em operação tenha crescido exponencialmente, saltando de pouco mais de 100 para mais de 930 na última década, a escala da produção ainda é incipiente. Estamos, literalmente, deixando energia e dinheiro se decomporem em aterros e lagoas de dejetos.

Eva Energia: O Modelo de Sucesso na Prática

É exatamente nesse gap entre o potencial e a realidade que empresas como a Eva Energia construíram seu sucesso. Fundada com a missão de ser uma “usina de soluções”, a empresa atua como uma parceira estratégica para o agronegócio e a indústria, implementando um modelo de negócio que ataca diretamente as dores desses setores.

O processo é um exemplo brilhante de economia circular:

  1. Parceria e Diagnóstico: A Eva Energia se associa a produtores rurais (como granjas de suínos e avícolas) e indústrias que geram grandes volumes de resíduos orgânicos.
  2. Investimento e Tecnologia: A empresa investe na construção de biodigestores e toda a infraestrutura necessária na propriedade do parceiro, assumindo o risco do capital e a complexidade tecnológica.
  3. Transformação do Passivo: Os resíduos, que antes eram um custo e um problema ambiental para o produtor, são canalizados para os biodigestores.
  4. Geração de Valor: Dentro do biodigestor, as bactérias transformam o resíduo em dois produtos de alto valor:
    a) Biogás: Que é usado para gerar energia elétrica limpa e firme, 24 horas por dia.
    b) Digestato: Um biofertilizante de alta qualidade que é devolvido ao produtor, reduzindo sua dependência de fertilizantes químicos importados.
  5. Monetização e Vantagens Mútuas: A energia elétrica gerada é vendida no mercado livre ou usada para abater a conta de luz de grandes consumidores através da Geração Distribuída, criando uma nova fonte de receita. O produtor rural, por sua vez, elimina seu passivo ambiental, reduz custos com fertilizantes e ainda pode receber uma participação na receita da energia, tudo isso sem precisar fazer o investimento inicial.

O modelo da Eva Energia, que já conta com dezenas de usinas em operação e em desenvolvimento, prova que a geração de biogás não é apenas ambientalmente correta, mas economicamente inteligente. É uma solução que gera valor para o produtor, para o investidor e para a sociedade.

Do Biogás ao Biometano: A Molécula da Descarbonização

A verdadeira virada de chave para o setor é a purificação do biogás para a obtenção do biometano. O biogás é uma mistura de gases, principalmente metano (CH₄) e dióxido de carbono (CO₂). O biometano, por sua vez, é o resultado de um processo de refino que remove o CO₂ e outras impurezas, resultando em um gás com mais de 90% de pureza em metano, quimicamente análogo ao gás natural fóssil.

Essa semelhança é sua maior virtude. O biometano, também chamado de Gás Natural Renovável (GNR), pode ser injetado diretamente nos gasodutos existentes, distribuído pela mesma infraestrutura e utilizado nos mesmos equipamentos que hoje consomem gás natural. Ele é, portanto, uma solução plug-and-play para a descarbonização.

As aplicações são vastas e estratégicas:

  • Substituição do Diesel: Caminhões, ônibus e máquinas agrícolas podem ser movidos a biometano, reduzindo drasticamente as emissões de gases de efeito estufa e de material particulado, um grande poluente local. Para o agronegócio, isso significa a possibilidade de produzir o próprio combustível, criando um ciclo de autossuficiência energética e protegendo-se da volatilidade dos preços do diesel.
  • Indústria: Setores eletrointensivos e que demandam calor em seus processos, como cerâmicas, alimentos e bebidas, podem substituir o gás natural fóssil ou o GLP por biometano sem qualquer adaptação, limpando sua matriz energética e agregando valor ESG aos seus produtos.
  • Geração de Energia Elétrica: O biogás pode ser usado em motogeradores para produzir eletricidade firme, despachável e localizada. Diferente da solar e da eólica, ele gera energia 24 horas por dia, 7 dias por semana, funcionando como uma fonte de base para o sistema, garantindo estabilidade e segurança, especialmente em locais remotos não conectados à rede principal.


Fonte: Abiogás 

A Revolução da Economia Circular no Campo

O impacto do biogás vai muito além da energia. Ao tratar os resíduos orgânicos, o biodigestor não apenas gera gás, mas também produz um subproduto de alto valor: o digestato. Este é um biofertilizante rico em nutrientes, que pode substituir uma parcela significativa dos fertilizantes químicos importados, cujo preço é dolarizado e volátil.

Essa é a essência da economia circular. Um passivo ambiental (o resíduo orgânico, que contamina o solo e a água e emite metano na atmosfera) é transformado em múltiplos ativos:

  1. Energia Elétrica (limpa e firme)
  2. Biocombustível (biometano)
  3. Biofertilizante (digestato)

Para um produtor rural, isso significa a criação de novas linhas de receita, a redução de custos operacionais (com energia e fertilizantes) e a solução de um problema de gestão de resíduos, tudo em um único investimento. É um modelo de negócio que fortalece a sustentabilidade ambiental e a resiliência econômica da propriedade.

Navegando o Labirinto Regulatório

Apesar do potencial evidente, a expansão do biogás em larga escala depende de um ambiente regulatório claro e incentivador. Historicamente, a falta de regras padronizadas entre os estados e a ausência de políticas nacionais robustas foram um entrave.

Nos últimos anos, contudo, o cenário começou a mudar. A criação do Mapa Regulatório do Biogás e Biometano pela ABiogás evidencia os avanços. Estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Bahia já possuem legislações que permitem a comercialização do biometano e sua injeção na rede de gás. O marco legal do saneamento e a Política Nacional de Resíduos Sólidos também criam incentivos indiretos, ao exigirem uma destinação adequada para os resíduos.

O Programa Metano Zero, lançado pelo governo federal, e a recente proposta do Brasil de quadruplicar o uso de combustíveis sustentáveis até 2035 são sinalizadores poderosos para o mercado. No entanto, para que o potencial se converta em realidade, são necessários passos adicionais, como a criação de mandatos de mistura de biometano no gás natural, a abertura de linhas de financiamento específicas e a simplificação do licenciamento ambiental para projetos de biodigestão.

A mensagem para investidores e formuladores de políticas é clara: cada tonelada de resíduo orgânico não aproveitada é um triplo prejuízo. É um dano ambiental, um custo de gestão e uma oportunidade de receita perdida. O biogás e o biometano oferecem um caminho para transformar esse passivo no motor de uma nova revolução industrial verde, movida pela vocação natural do Brasil. O gigante adormecido está, finalmente, pronto para se levantar.

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