O Brasil gera milhões de toneladas de lixo por ano — mas desperdiça a maior parte do seu potencial energético. A recuperação energética de resíduos sólidos urbanos (RSU) ainda é incipiente, apesar de ser uma estratégia promissora para enfrentar a crise ambiental, reduzir emissões e diversificar a matriz energética. O que falta para virar essa chave?
O desperdício em números
Em 2023, os brasileiros produziram cerca de 81 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos, de acordo com dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). São mais de 220 mil toneladas por dia. Desse total, uma parte é reciclada (menos de 5%), outra vai para aterros sanitários e uma fatia ainda significativa é descartada em lixões a céu aberto, prática proibida desde 2010, mas ainda comum em mais de mil municípios.
Segundo estimativas da Agência Internacional de Energia (IEA), o lixo urbano mal gerido é responsável por cerca de 8% das emissões globais de metano, um dos gases de efeito estufa mais agressivos ao clima, com poder de aquecimento 86 vezes superior ao CO₂ em um período de 20 anos.
Transformar lixo em energia: o que isso significa?
A chamada recuperação energética é uma forma de extrair valor dos resíduos não recicláveis, transformando-os em eletricidade, calor ou combustíveis alternativos. No Brasil, as principais tecnologias com potencial de aplicação incluem:
- Termovalorização (ou incineração com aproveitamento energético): queima controlada de resíduos para geração de energia.
- Coprocessamento: uso do chamado CDR – Combustível Derivado de Resíduos como fonte energética em fornos de cimento.
- Biodigestão anaeróbia: decomposição de resíduos orgânicos para geração de biogás, que pode ser convertido em eletricidade ou biometano.
O Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos (SINIR) reconhece a recuperação energética como forma legítima de destinação final ambientalmente adequada, dentro da hierarquia da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
O potencial brasileiro é gigantesco
De acordo com a Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (ABREN), se o Brasil tratasse 47% de seu lixo urbano em usinas de termovalorização, poderia instalar 3,3 GW de capacidade de geração elétrica, o suficiente para abastecer mais de 4 milhões de residências. O setor geraria mais de 200 mil empregos diretos e indiretos, além de movimentar R$ 200 bilhões em investimentos e tributos ao longo de 40 anos.
Segundo dados atualizados da própria ABREN, a recuperação energética, o biogás e o biometano juntos têm potencial para atrair R$ 500 bilhões em investimentos nos próximos anos.
Além disso, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares) prevê a contratação de 994 MW de potência instalada de recuperação energética, 252 MW de gás de aterro e 69 MW de biodigestão anaeróbica até 2040 — totalizando R$ 54,67 bilhões em investimentos.
Estudos da ABREN também apontam que 28 regiões metropolitanas brasileiras concentram 70% do lixo nacional e poderiam comportar usinas de recuperação energética com viabilidade econômica, ambiental e social. No entanto, há apenas uma usina desse tipo em construção: a URE Barueri, com previsão de entrada em operação em 2027 e capacidade de 20 MW. Outros projetos em São Paulo, Rio de Janeiro, Mauá, Campinas e Brasília somam investimentos superiores a R$ 6 bilhões e já possuem licenças prévias e conexões elétricas.
Biogás: o elo entre o lixo e a energia limpa no campo e nas cidades
Entre todas as formas de recuperação energética, o biogás ocupa uma posição estratégica no Brasil por sua versatilidade e conexão direta com o agronegócio, saneamento e gestão urbana.
O biogás é gerado pela decomposição anaeróbia (sem oxigênio) de resíduos orgânicos, como:
- Esgoto sanitário
- Resíduos da agropecuária (dejetos de animais, restos de lavouras)
- Lixo orgânico urbano
Segundo a Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), o Brasil tem potencial para gerar mais de 120 milhões de m³ de biogás por dia, o suficiente para substituir 70% do consumo nacional de diesel rodoviário. Mas de acordo com a ABREN, menos de 3% desse potencial é aproveitado, sendo que 92% está nos resíduos da agropecuária.
Além de gerar energia, o biogás contribui para:
- Reduzir as emissões de metano, gás extremamente nocivo ao clima.
- Diminuir a dependência de combustíveis fósseis no transporte e na geração distribuída.
- Criar economias circulares locais, gerando energia, biofertilizantes e emprego no campo.
Enquanto o país desperdiça grande parte do seu potencial energético vindo de resíduos, a Eva Energia lidera um movimento que prova o contrário: é possível transformar lixo orgânico em eletricidade, desenvolvimento e sustentabilidade real. Atuando com projetos inovadores de biogás e biometano, a empresa tem conectado o agronegócio e a gestão urbana a soluções que reduzem emissões, geram valor local e pavimentam o futuro da matriz energética brasileira.
Por que não acontece?
Apesar do potencial, o setor caminha a passos lentos por vários motivos:
- Insegurança jurídica e regulatória: A ausência de marcos regulatórios específicos desestimula investidores. Até hoje, não há uma tarifa regulada específica para energia gerada a partir do lixo, como existe para outras fontes renováveis.
- Falta de incentivos financeiros: Ao contrário da energia solar ou eólica, a recuperação energética não conta com isenções fiscais ou linhas de financiamento específicas em bancos públicos.
- Concorrência com o aterro sanitário: A tarifa média paga aos aterros hoje é de R$ 140/tonelada. Para as UREs serem viáveis, a energia precisa ser remunerada entre R$ 500 a R$ 750/MWh. O custo de biodigestão chega a R$ 781/MWh, mas térmicas fósseis do sistema elétrico superam os R$ 3.000/MWh em momentos de pico.
- Cultura do desperdício: A coleta seletiva ainda não cobre sequer 20% dos domicílios brasileiros. A mistura de resíduos orgânicos e recicláveis compromete a eficiência tanto da reciclagem quanto da recuperação energética.
Governo e marcos recentes: esperança à vista?
O governo federal tem dado sinais tímidos de avanço. Em 2019, foi publicada a Portaria Interministerial nº 274, que estabelece diretrizes para projetos de recuperação energética, classificando-os como destinação final ambientalmente adequada. No mesmo ano, o Decreto nº 10.117/2019 incluiu esses empreendimentos no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), facilitando concessões e licitações.
O Leilão de Energia A-5 de 2021, da ANEEL, abriu pela primeira vez espaço para projetos de energia a partir de resíduos sólidos. Foram 12 projetos cadastrados, mas nenhum contratado, devido à falta de competitividade frente a fontes mais baratas.
Já o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), atualizado em 2024, prevê metas ambiciosas para 2040: instalar 994 MW em termovalorização, 252 MW de biogás e 69 MW de biodigestão anaeróbia.
Especialistas defendem virada estratégica
Para a engenheira e consultora ambiental Juliana Matos, o Brasil está “sentado sobre uma mina energética mal aproveitada”. Segundo ela, “a recuperação energética é complementar à reciclagem. Os resíduos que não têm mercado ou valor comercial devem ser convertidos em energia, não enterrados”.
A visão é compartilhada pelo economista Marcos Grecco, da GNPW Group, que defende o uso do lixo como ativo energético em projetos híbridos. “Podemos integrar o CDR com solar ou biogás, criando soluções modulares em polos industriais e cidades médias”, explica.
Caminhos possíveis
O avanço do setor depende de medidas concretas e integradas:
- Criação de uma tarifa específica para energia proveniente de resíduos.
- Inclusão obrigatória em leilões de energia com regras de submercado urbano.
- Apoio a municípios para estruturação de consórcios intermunicipais, que viabilizem projetos regionais.
- Campanhas de educação ambiental para separar resíduos na origem.
- Estímulo ao investimento privado com garantias de retorno por parte do BNDES e outros bancos públicos.
O Brasil está diante de uma oportunidade histórica: transformar um problema ambiental crônico em fonte de energia limpa, geradora de empregos e promotora da economia circular. Mas, para isso, será preciso mais do que promessas: é hora de enfrentar o lixo como recurso estratégico, e não como fardo.
Se o país quiser mesmo liderar a transição energética na América Latina, precisa começar pelo básico — e isso inclui tirar o lixo da invisibilidade e colocá-lo no centro da pauta energética.
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